Resenha do Cd Auto-fidelidade / Ritchie

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AUTO-FIDELIDADE
RITCHIE
2002


Por Lazaro Cassar

Existe no Brasil, uma estirpe de cantores/grupos que, bota quarenta anos pra cima, continua com a mesma soma de existencialismozinho-pseudão com rebeldia-de-quem-nunca-virou-laje-na-vida, para o eterno deleite da mesmíssima estirpe de fãs que os seguem desde o “contudente” álbum de estréia o tipo de fã que se emociona com discursinhos anti-globalização, anti-Bush, anti-lula, anti-grana, e apreciam a “pungência catártica” de versos como “sombras na minha mente”, “o brilho do sol nascerá (!) novamente”, ou “a noite se fez em minha alma”. Não raro, estes fãs escarnecem tudo aquilo que soe comum, simples e não se leve muito a sério.

É por isso que o Ritchie não vende mais. Ele é anti toda essa gente sem ser anti-qualquer coisa. Entendeu? Explico.

Quando lançou seu primeiro álbum em 83, o “Vôo de Coração”, as músicas pop que tocavam na nas rádios eras as da Blitz, da Gang 90, do Lulu, da Marina, ... Havia uma deliciosa libertinagem musical no ar; as canções eram despretensiosamente hedonistas e leves. E tinham o mesmo alcance que os pagodes e axés hoje têm. O Ritchie, por exemplo, vendeu mais que Roberto Carlos com aquele disco. O compacto do Absyntho com “Ursinho Blau-Blau” também vendeu muito.

Aí veio as “diretas já”. E todos se politizam, se conscientizam, trocam MPB pelo PMDB, adquirem uma postura, ãhn, engajada; pernóstica ao extremo, “séria” e taciturna. O egocentrismo se exacerba e, de repente, aparecem vários estudantes de classe média cantando por algo que não revelava suas realidades. Não havia o fator empírico que lhes apregoasse autoridade para esmurrar o sistema (ao contrário do que ocorrera com Gil, Caetano, Chico, Lobão e, mais recentemente, Racionais MC). Logicamente, não me refiro à qualidade de suas músicas.

E Ritchie? E Lulu? E Gang 90 (pós-Júlio Barroso)? E Blitz? E Absyntho? E Metrô? E Magazine? Se foderam todos eles. Não havia mais onda no mar, nem louco amor, nem mesmo “sou free demais”...

Ritchie vende 25000 cópias de seu segundo “LP” (que tinha a deliciosa e esquecida “Só pra o vento”). Lulu ainda respirava por aparelhos em 86, mas, daí em diante (até seu retorno triunfal com o pop-gay de “Eu e Memê, Memê e Eu”, de 95) foi só Jacaré. Quem não fosse “contra o sistema” estava fora dos sistema. Esquisito, não?

Pulo para 2002, quando Ritchie lança “Auto-Fidelidade”, depois de nove anos sem entrar num estúdio. Um disco roqueiro, sincrônico, redondo e inteligente. Ritchie continua cantando bem e Rocks do tipo “Jardins de Guerra” e “Onde que eu errei?” (parceria com Erasmo Carlos) poderiam muito bem substituir a maior parte dessas coisas aí que se ouve nas rádios Rock. Mesmo as baladas do álbum (“Antes que o amor acabe” e “Lágrimas demais”) são superiores ao que se produz no estilo, hoje em dia. Então qual é o motivo do fracasso comercial do disco? Vamos por partes.

Sabe aquele tipinho de fã que eu citei no primeiro parágrafo? Pois é, infelizmente esses engodos são o alvo, ou perfil de 99% dos ouvintes dessas rádios Rock, se é que se pode denegrir o nome “Rock” vinculando-o a essas bobeiras. E o Ritchie não tem conflitinhos existenciais, não xinga a mãe de ninguém, não regrava Legião (sequer se regrava, como muitos por aí). E é o Ritchie, o pior pesadelo dos adolescentes vítimas de uma drummonização cerebral que os coíbe de perceber aquilo que se adapta perfeitamente ao seu formato, no caso, as letras do Ritchie à sua música. E Ritchie estudou literatura na Inglaterra, onde o buraco é mais embaixo. Com certeza poderia escrever epopéias sonoras.

Acontece que letra de música é letra de música e texto literário é texto literário. Naturalmente não sou tão maniqueísta e, lógico, pode ocorrer uma aproximação entre os dois gêneros. Repito: uma aproximação. Em maior ou menor escala. A própria literariedade contida na obra musical do Chico Buarque não foi suficiente para apaziguar sua verve intrinsecamente literária, expandida em livros.

Uma letra de música pode ser genial por sua simplicidade e constrangeradora por seu hermetismo. Ritchie se encaixa na primeira categoria. Poucos conseguem fundir de forma tão coesa e harmônica música e texto. Indiscutivelmente, Ritchie é um gênio. Sua música é tão escancaradamente burguesa (no bom sentido), sem máscaras ou firulas, que nem os burgueses a ouvem. Estes adoram posar de reacionários, adoram baixar músicas da Internet, concomitantemente guardam seus discos numa prateleira sem quase ouvi-los e viram evangélicos (momento desabafo).

Meus conselhos a esses... sei lá, esses. Querem ter bagagem cultural? Vão ler, leiam Guimarães Rosa, Graciliano Ramos... até Paulo Coelho serve. Agora, querem ouvir música boa? Ouça o último do Ritchie. Na boa, sem preconceitos. Já dizia Raul: “Uma flor é uma flor e não tem outro jeito da gente dizer”.

Resenha Publicada em 10/02/2004





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