Por Thais Sechetin
Quem já ouviu Chris Cornell ao vivo se lembra do talento que ele tinha para reinventar ritmos e arranjos, mesmo que fosse apenas na base da voz e violão. Quem teve a oportunidade de assisti-lo em 2011 no festival SWU realizado em Paulínia, interior de São Paulo, não me deixa mentir.
Em 2016, meses antes de sua morte, Chris se juntou ao velho amigo, o produtor Brendan O´Brien, que produziu vários álbuns do Pearl Jam e o Superunknown, do Soundgarden, para gravar o álbum que em 11 de dezembro de 2020 foi lançado nas plataformas digitais como “No One Sings Like You Anymore, Vol.1”, álbum de covers de ídolos de Chris Cornell cujo título faz menção ao clássico do Soundgarden, Black Hole Sun. A versão física do álbum está prevista para o dia 19 de março de 2021.
“No One Sings Like You Anymore, Vol. 1” foi lançado de surpresa pela família de Chris como um presente de Natal que o mundo merecia após um 2020 caótico, triste e divisor de seres humanos, ideologias e águas. Os bravos sobreviventes globais a uma economia em queda livre, ameaçados por uma assombração invisível e apartados tanto física quanto ideologicamente, necessitavam de um acalento, que dessa vez partiu de uma das vozes mais passionais do Rock.
É sempre mais difícil escrever sobre música cover, quem dirá sobre um álbum inteiro. Porém, esse lançamento recente de Chris Cornell consegue ser descrito.Falar sobre ele é quase como escrever um diário de bordo de uma viagem, no tempo e na história da música, descrevendo cada estilo musical visitado por ele como quem descreve paisagens.
E nosso primeiro destino é o ano de 1971 na releitura de um dos clássicos do álbum Pearl, da Janis Joplin: “ Get It While You Can”, perde sua identidade Blues mas ganha uma batida de cordas perfeita, sutis efeitos eletrônicos e uma suavidade vocal que a deixa moderna e com ares otimistas.
A viagem permanece em 71, agora com o cover de Harry Nilsson, onde Chris e O´Brien dão gás e juventude para o Classic Rock “Jump Into The Fire”. Chris canta de forma mais agressiva, a música perde os sete minutos da versão de Harry, repletos de solos de guitarra e grooves, mas ganha a eleição como single em potencial e até status de versão que rouba o lugar da canção original. É como se a “Jump Into The Fire” de 1971 desse uma voltinha em alguma fonte da juventude.
O álbum segue com “Sad Sad City”, dando um salto imenso pelas linhas cronológicas. A faixa original é dos anos 2000, do duo texano Ghostland Observatory, onde os sintetizadores de uma dupla são substituídos pelo estilo folk da outra(Chris/O'Brien),que até conseguiram deixar o som cover mais texano que o original. Embora cada versão tenha suas particularidades, isentando-as de comparações, até mesmo porque a intenção de Chris seria homenagear, e não disputar.
Já “Patience”, do Guns N´ Roses, fica quase irreconhecível com a nova introdução,sendo apenas identificada quando entram os vocais. Embora seja uma releitura interessante, a versão nova jamais superará a original, devido ao seu sucesso. Consta como o primeiro single do “No One Sings…”,lançado em 20 de julho de 2020, data em que seria o 57º aniversário de Chris Cornell. A nova “Patience” alcançou o topo da Mainstream Rock Songs, um dos gráficos da Billboard.
A metade do álbum volta para 1985, quando Prince escreveu para o The Family a música “ Nothing Compares 2 You”, que não rendeu frutos (a canção era bem sofrida). Porém, ela ganhou cinco anos mais tarde a versão da irlandesa Sinéad O ́Connor, se tornando icônica. Já a versão de Chris não parece ter essa pretensão, pois mesmo sendo bem produzida e agradável, ainda fica bem simples e deslocada do que seria um setlist de Chris Cornell, claro, na opinião desta que vos escreve.
Já “Watching The Wheels”, de John Lennon, é uma das mais conhecidas versões originais do disco. Foi gravada para o álbum Double Fantasy, lançado semanas antes do assassinato de John e foi produzida por ele, Yoko Ono e Jack Douglas. A música fala sobre a vida doméstica de John, já longe dos Beatles. A versão de Chris não ganhou ousadias e talvez por esse motivo dê para sentir nessa faixa em especial e de forma mais nítida suas intenções ao regravar músicas que o inspiraram durante a vida: homenagear com gratidão, respeito e amor.
O álbum também contém duas versões de músicas de uma mesma cantora: As faixas “ You Don't Know Nothing About Love” e “Stay With Me Baby”, ambas de 1966 e gravadas por Lorraine Ellison seguem à risca o alcance de notas altíssimas e melodias do Blues, como só os artistas de R&B sabem fazer. E Chris deu conta do recado, sem modernizar.
A banda Electric Light Orchestra o inspirou a dar uma versão de“ Showdown”, sabiamente selecionada para equilibrar as baladas e o Blues da metade do álbum, fazendo uma visita para as longínquas terras da Era Disco, tão distantes do Grunge que lançou Chris Cornell para o mundo e onde poucos poderiam imaginar que havia referência musical para ele.
Antes de encerrar o álbum, Chris também flerta com o as baladas de faroeste, se podemos chamar assim. O Country pouco conhecido de Terry Reid, “To Be Treated Rite”fez parte da soundtrack do filme “Rejeitados Pelo Diabo” (The Devil 's Rejects) ,dirigido por Rob Zombie. A versão de Chris fez adaptação com um vocal mais agudo que o original e acelerou um pouco o ritmo instrumental, também me dando a sensação de uma canção mais lírica, no sentido de expressar mais emoção, coisa que Chris sabia fazer muito bem, independente de quais emoções sejam.
Vicky Cornell, a viúva de Chris, disse que o lançamento do álbum foi um presente aos fãs com sabor agridoce. Na minha interpretação, concordando com ela, seria maravilhoso poder ver essas versões ao vivo, talvez apenas com voz e violão à moda Chris Cornell. Como não será possível, é exatamente esse fato que dá o toque agridoce à obra. E se não há outra maneira,podemos pelo menos sonhar com um “No One Sings... Vol. 2'', já que versões de Bob Marley, Metallica e outros ficaram de fora do volume 1. E assim o faremos,enquanto aguardamos por dias melhores e viagens possíveis.