Por Ricardo Schott
O modus operandi de Caetano Veloso causa mais discussão do que sua própria música - como se o discurso que está por trás de seus discos falasse mais alto que seus próprios discos. Traduzindo para os leitores: Caetano quer mesmo é chamar atenção. Quer que a imprensa fique discutindo dias e dias a fio o seu último lançamento. A música fica em segundo plano. Às vezes, mesmo assim,a coisa dá certo - e ele até passa por intelectual, coisa que até que ele é. Às vezes, não acontece nada disso.
Cê, o (perdi a conta)º disco do cantor baiano, já está chamando a atenção por suscitar discussões por aí afora, sempre com um único tom: isso é rock? Pois é, vamos aos fatos. Caetano, um cantor e compositor que tem passado os últimos tempos em estado de suspensão (Circuladô Vivo, disco duplo ao vivo de 1992, foi seu último lançamento que realmente prestou - e nem era um disco de inéditas) resolveu - vá lá - pelo menos mostrar que não está tão morto assim. E isso em todos os sentidos. Após acabar seu casamento de vários anos com a empresária Paula Lavigne, ele dediciu recrutar os amigos do filho Moreno Veloso - já vinha trabalhando com alguns deles, aliás - e tentou mostrar que vem se atualizando musicalmente. A coluna Gente Boa, do jornal O Globo, já andou denunciando (opa!) que o baiano chegou a comprar discos do Franz Ferdinand, novidade roqueira que o povo indie, pelo menos até dois minutos atrás, adorava.
Diga-se de passagem, Caetano nunca foi muito feliz na aproximação com o conceito rock, em momento nenhum de sua carreira. O Tropicalismo tinha muito de rock - por intermédio das guitarras de Lanny Gordin (artífice da sujeira na guitarra, no período) e Sérgio Dias, dos Mutantes. Mas só isso. O par de discos de Caetano lançados em 1968 e 1969 cheira a MPB. Gilberto Gil, até por suas poucas limitações técnicas e por sua disciplina bem mais rígida ao conhecer e estudar música, sempre lidou bem melhor que Caetano com os signos pop. Dois momentos em que Caetano se roçou no rock devem estar frescos na memória de muita gente: 1) o disco Velô, de 1983, que ele falou que era "meu álbum mais rocky" e trazia a equivocada e quilométrica "Podres poderes" - com instrumentação providenciada por músicos do vnaguardista paulistano Arrigo Barnabé; 2) o dia em que ele, aboletado na cadeira de entrevistado de João Gordo, no Gordo A Go-Go da MTV , deu pancadinhas na mesa e bradou: "SE HOJE EXISTE SEPULTURA AGRADEÇAM A MIM!!! A MIM!!". Lamentável.
Dessa vez, Caetano quis chamar MESMO a atenção. Da imprensa, ao posar de "apenas mais um membro da galera" (a galera: o guitarrista Pedro Sá, o baixista Ricardo Dias Gomes e o baterista Marcelo Callado, além do filho Moreno, que produziu o CD). Da ex-esposa, ao adotar um discurso irônico em relação ao universo feminino ("Homem"), ao introduzir espetadas nas letras ("você não vai me reconhecer quando eu passar por você", em "Outro", aquela em que ele fala que está "feliz e mau como um p** duro"), etc. Dos críticos de plantão, ao inserir gírias de gosto duvidoso (o "você foi mór rata comigo" de "Rockz") e misturar retóricas quase cinema-novistas ("O herói") com discursos sem sentido ou adolescentes - na mesma faixa, Caetano faz uma defesa da luta social e racial que soa como se Chorão, do Charlie Brown Jr., tivesse resolvido ler as obras completas de Sérgio Buarque de Hollanda. É o tal "discurso da incoerência" ao qual já vi até um conhecido produtor de rock brasileiro se referindo - de acordo com a teoria do tal produtor (que deve estar certo), se mantém no rock nacional quem ainda alude a uma certa incoerência, a uma certa "liberdade". Caetano está aí desde 1966 fazendo mais ou menos isso. O duro seria explicar a ele que existem outros caminhos.
Cê, longe de qualquer discussão sobre "isso é rock ou não é?", é um bom disco. Caetano conseguiu, como talvez nunca tenha aventado, se aproximar muito bem do conceito rock - seja na capa, uma citação barata de Waiting for the sirens call, do New Order, seja em "Rocks", que (vá lá), até insere Pixies no caldeirão de sonoridades do cantor, graças a palhetadas e conduções de baixo-bateria que remetem a "Gouge away", "Debaser" e outros clássicos da banda de indie rock - mas, claro, sem metade do peso do original. "Minhas lágrimas" tem o mesmo lado estradeiro e nostálgico que pode ser encontrado em bandas como Black Rebel Motorcycle Club, Raveonettes e os próprios Pixies. Em outros momentos, o lado roqueiro se despede e a baianidade, no que isso tem de bom e de ruim, toma conta, em músicas como "Musa híbrida", canção na qual Caetano mostra a mesma "mão" para compor que já apresentara em "Não enche", do Livro. E isso não é bem um elogio.
O lado experimental de outras investidas de Caetano surge forte em "Wally Salomão", música em homenagem ao poeta baiano, falecido em 2003 - uma condução marcial, percussiva,que já houve quem comparasse com os esquisitões do Ween, mas que tem a ver mesmo é com Noites do norte. Tem ainda o amor/ódio da boa "Não me arrependo", outra alfinetada em Paula Lavigne, que soa como molecagem, sentimentalismo barato, mas com ótimos versos - "não, nada irá nesse mundo apagar o desenho que temos aqui/nem o maior dos seus erros, meus erros, remorsos, o farão sumir". De qualquer jeito, um sentimento que, para quem quer demonstrar renovação e juventude, soa mais como rancor bobo, falta de noção. Daqui a pouco só falta algum gaiato falar em MPBEmo. E olha que não é difícil. Até lá resta falar que Cê merece uma boa audição. E uma boa zoação, pra não perder o hábito.