Por Guilherme Cruz
É raro um artista com muitos anos de estrada ter a coragem de buscar caminhos pelos quais nunca explorou e fazê-lo de maneira tão magistral como Elza Soares tem feito nos últimos três discos – em que pese o fato de que o álbum Vivo Feliz, de 2003, ter passado injustamente despercebido. É sempre um risco se lançar ao novo de peito aberto, primeiro há o perigo de descaracterizar-se e com isso perder fãs; segundo corre-se o risco de poucas vendas, podendo levar ao desaparecimento do artista. Além do que nos é naturalmente confortável permanecer na zona segura na qual nos habituamos a viver, o que se exemplifica pelo fato de que artistas com muitos anos de estrada tendem, nos últimos trabalhos, a repisar a fórmula de sucesso que os consagrou.
E qualquer grande artista está suscetível a sofrer dessa quase perda de originalidade. Penso que foi o caso de Elza Soares até o já citado Vivo Feliz. Longe de dizer que sua obra não tinha qualidade após seus anos dourados, mesmo porque suas interpretações sempre foram cheias de qualidade vocal e uma sofisticação impar de repertório e arranjo dentre as interpretes brasileiras. A questão é que faltava à sua carreira um sopro de vida que a recolocasse novamente no cenário musical brasileiro com o peso que ela merece. E isso se deu a partir de 2003.
Neste texto vou falar um pouco de seu último disco, Deus é Mulher, lançado neste ano de 2018. Para isso é impossível não vê-lo como uma sequência lógica de seu anterior, de 2015, A Mulher do Fim do Mundo. Vejo ambos como um só disco, apresentando um diálogo em sua estética e temática. Por uma questão de tamanho não pretendo explorar a fundo esta ligação, apenas irei esboçá-la quando necessário.
De início as capas são sempre ótimos indicadores. No A Mulher do Fim do Mundo, a capa apresentava um conceito minimalista, com linhas retas e bem demarcadas, de cores escuras e densas, que se coaduna com o tema distópico do disco – até o figurino de Elza nos show dialogava com essa temática, apresentando um cabelo roxo escuro, sentada em um trono negro com uma roupa também negra, cheia de pontas afiadas tal qual uma armadura, bastante adequada para quem iria enfrentar o fim do mundo – já neste novo disco a capa e a própria Elza são outras, seu cabelo é dourado como um sol iluminando e dissolvendo a escuridão que o antecedeu. A maquiagem da artista é também mais clara e seu canto menos sombrio. Portanto já nos é apresentado como esses discos serão diferentes, porém complementares.
No primeiro, Elza irá revelar um mundo caótico, onde há “asas de um anjo soltas pelo chão” e “quem tem cabeça, pulmão, bexiga, rim, coração, já vai pulando na cova”. Não há possibilidade de se salvar neste contexto, nem mesmo a própria artista, que precisa gritar para que a deixem cantar.
Em seu novo trabalho a esperança ressoa através de sua voz, nos dando uma possibilidade redentora frente aos horrores apresentados anteriormente. Ambos os discos, juntos, apresentam uma estrutura como as histórias dos fantasmas de natal, aqueles contos aonde um homem, que é mal, recebe a visita de três fantasmas, o fantasma do futuro é o disco A Mulher do Fim do Mundo, ou seja, é como se Elza nos mostrasse a consequência futura de nossos atos, alertando-nos. Com isso ela dá a chance de mudarmos nossos atos antes que a distopia do disco se concretize.
Já em Deus é Mulher temos o papel do anjo do presente, que indica os caminhos pelos quais seguir. A cantora encarna um anjo/Elza, “Minha voz/ Uso para dizer o que se cala” que toma para si o papel da revelação, sendo introduzida pelos tambores da tradição que lhe é mãe. Seu canto se torna o canto da nação, propondo uma costura entre todos nós, pois apenas na união é que podemos transformar as coisas. Ela questiona “Para que separar?/ Para que dividir?” dado que “Mil nações” nos moldaram.
A partir deste ponto o anjo/Elza faz um convite, assim como no disco anterior, mas aqui ela não nos guiará por entre destroços de um mundo agonizante, mas através de um presente tenso e perdido. “Exu nas escolas” questiona as ideias por trás da nossa educação, revelando a sombria presença de “costumes frágeis das crenças limitantes”, acusando influências maléficas e a destruição da corrupção.
O disco exige como indispensável para nossa redenção a libertação das mulheres e impõe a quebra dos tabus. Se em A Mulher do Fim do Mundo a libertação deveria ser feita botando “Pra Fuder”, aqui a levada é menos direta e agressiva, mas não menos contundente, as canções “Banho” e “Eu Quero Comer Você” coloca a liberdade feminina como uma realidade obrigatória. A mulher ganha o direito de sentir-se plena no sexo, “misturar os sólidos” com os seus “líquidos” deixando que a anjo/Elza descreva “minha lagoa engolindo a sua boca”. Assim como, nesta mesma toada, não haja mais vergonha para nenhuma mulher gritar “Eu quero dar [ou comer] você” fazendo com que nem seja “preciso explicar/ Nem tenho o que soletrar” apenas as mulheres e suas decisões livres.
A canção “Língua Solta” é o manifesto desse anjo/Elza, ela inicia nos lembrando do risco de nossos atos e do fato da escuridão estar sempre à espreita “Some o dia, cai a noite fria”, mas ela não deixa de nos dar coragem quando defende a união como arma de combate e mudança, “Vamos juntas que tem muito para fazer/ (...)/ Somos duas, nós e todas nós” e revela que é apenas “juntas” que podemos “Levantar o sol”. Porque num mundo plural como o nosso, onde as pessoas não têm o “mesmo sonho e opinião” é necessário permitir “falar e ouvir também” e não importa ser “puta, presidente ou cardeal” pois hoje “É dia de encarar o tempo e os leões/ (...)/ Por nós, só nós e o mundo inteiro para gritar”.
Com isso o anjo/Elza descobre os inimigos escondidos, “Hienas na TV” soa como o dedo apontado na cara dos monstros que se escondem, à espreita nas sombras, contra eles é necessário lutar, e a luta começa com um “Sim, digo sim para quem diz não”, pois esse “sim” tem o poder de destruir tabus que existem para oprimir, é o “sim” que desmantela as velhas estruturas, é o “sim” que proíbe o proibido. Porém, não podemos esquecer-nos de estar sempre em alerta, como Foucault diz, o inimigo tem o poder de penetrar, englobar e destruir as lutas, por isso “para quem quiser ouvir, eu digo não/ Não, digo não porque eles vêm/ Eles vêm para devorar, meu coração”. Devemos sempre estar em alerta para que não sejam as hienas a rirem no fim. E nessa luta é preciso sempre ter “Clareza”, para que possamos combater com lucidez e “(...) luz na janela/ (...) um pouco de música”.
As duas canções seguintes trabalham juntas com uma força tremenda para obliterar de vez os tabus e preconceitos, porque apenas diante dessa destruição é que limparemos o terreno, possibilitando a construção de um novo mundo. “Um Olho Aberto” retoma a necessidade de estarmos sempre prontos, mas aqui, a luta é contra a imposição sobre nossos corpos, as barreiras que aprisionam quem somos e quem escolhemos ser, “Ora, cara, não me venha com esse papo sobre a natureza/ Qualquer um inventa a natureza que melhor lhe caia”. Não há espaço para o cerceamento neste mundo proposto pelo anjo/Elza. Na canção seguinte, “Credo”, a letra brinca com as semânticas da palavra credo, sendo ao mesmo tempo uma expressão de nojo e de crença. Na luta contra as imposições bate-se de frente com as religiões que buscam castrar as pessoas. A liberdade aqui canta: “Minha fé quem faz sou eu/ Não preciso que ninguém me guie” e o refrão faz ressoar “Credo, credo/ Sai para lá com essa doutrinação/ Credo, credo/ Eu não quero o medo me dando sermão/ Credo, credo/ Falta sim nessa sua oração”, vemos novamente o poderoso “sim” desse anjo/Elza que arremata “Que o amor é o Deus que não cabe na religião”.
Em “Dentro de Cada Um” é desvelada a força maior que começa a brotar de dentro de todos, a força feminina, numa desobediência civil como Thoreau propôs, sendo cantada em um arranjo de percussão lembrando um ritual pagão de invocação. “A mulher de dentro de cada um não quer mais silencio”, o anjo/Elza retira o medo e mostra que não há poder maior do que o poder da mulher e o poder feminino contido em todos, como também já foi cantado por Gilberto Gil em “Super-Homem”, “(...) minha porção mulher que até agora se resguardara/ É a porção melhor que trago em mim agora/ É o que me faz viver”. E é essa porção mais preciosa que há em todos nós que “(...) vai sair/ De dentro de cada um/ A mulher vai sair”. E todos são convocados para esse levante, “quem já levou porrada na vida”, quem “sofreu e morreu sem guarida”, da “menina suada que vendeu o corpo para ter outra chance” até o “mocinho matado jogado num canto por ser diferente”, todos são convocador a se erguer, se empoderar de seu lado mais forte, o lado mulher e gritar “Sou eu/ A mulher sou eu”.
Por fim, o anjo/Elza é um emissário de Deus e dado ser a força feminina a maior que há, Deus não poderia ser outra coisa se não mulher. “Deus Há de Ser” fecha o disco como uma oração a Deus mulher a qual protege todos – e por isso nos enviou esse anjo/Elza. A única chance de criar um mundo melhor é “Se for mulher/ Deus há de ser/ Deus há de ser fêmea/ (...) Deus há de ser linda” e não só é cantada a obviedade do fato de que “Deus há de ser mulher”, mas também somos acariciados com a revelação da qual “Deus é mãe”, pois é necessário ter isso na cabeça, porquanto mesmo diante da urgência de tantas lutas, ainda sim temos a certeza de que Deus é mulher e mãe, assim sendo, nunca estamos sozinhos.
Eu pessoalmente creio que dentre os “medalhões da MPB” Elza Soares é uma das mais relevantes nos dias de hoje, e mesmo na casa dos oitenta anos ela tem a força de carregar nos ombros e na voz uma luta que é gigantesca, talvez maior do que ela e, com certeza, maior do que todos nós individualmente, mas Elza tem a coragem de vestir o papel do artista que vai até o inferno em A Mulher do Fim do Mundo e volta para nos mostrar o que viu, depois, se veste de anjo buscando revelar nossa força mais poderosa, e nos ensina a usá-la como arma, contra as hienas, as imposições e os preconceitos de um mundo caduco que precisa ser destruído e reconstruído.